segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Caminhantes de Luz - Texto com o qual concorri ao concurso "CONTE CONNOSCO" - classificação: 86º Lugar - Obrigada pelos Vossos Votos!

Quando a nossa Vida depende de outros, e quando somos salvos por eles, há que prestar tributo a esses Homens e Mulheres que fazem caminhadas difíceis connosco, e que se tornam parte integrante de nossas Vidas.

 
É noite e sinto-me só. Acabei de saber que tenho cancro e, aos 35 anos, com dois filhos pequenos e montes de coisas para pagar, a escuridão que se abate sobre mim, é imensa. Contudo, penso em todos os outros que, como eu, também descobrem que, afinal a Vida não dura para sempre, e às vezes pode acabar muito antes que o que esperamos.
O caminho a trilhar será difícil, mas não há lugar para a derrota. O único objectivo, nesta luta pela vida, tem que ser VIVER. Reviro-me na cama, pensando em todos quantos se irão preocupar comigo, em todos quanto meu sofrimento e minha eventual ausência poderá tocar. Não choro. As lágrimas não têm, neste momento, lugar para poderem, sequer remotamente, existir.
As pessoas que encontrei ao longo da caminhada, depois dessa noite muito escura, foram a Luz de meus dias cinzentos, incertos e sofridos. Foram a minha Esperança nas horas em que pensei em desistir, foram a razão de meu sorriso em todos os dias durante esse longo ano.
A quimioterapia durou seis meses. Foram os piores e os melhores meses da minha vida. A sala de tratamentos permanece em minha memória, como um local cheio de alegria, enfermeiros e enfermeiras cantarolando, brincando com os nossos “cateteres malandros” que por vezes não funcionavam, tratando-nos sempre com o maior respeito, amizade e carinho pelas nossas tantas queixas e lamentações.
Sempre saí dali com a Alma lavada, com a Esperança renovada, de que, desta vez, os efeitos secundários iriam passar mais depressa. Nesses oito tratamentos, conheci pessoas fabulosas, que falavam da doença como a melhor coisa que lhes aconteceu na vida, pois, apesar de tudo, agora sabiam quem realmente as amava, viam o Mundo sob outro ângulo, e a morte como uma continuidade da Vida, onde, certamente, se sofreria menos. Trocávamos contactos, experiências, sorrisos e lágrimas de comoção. Não existe nada igual ao elo que se cria entre seres humanos em sofrimento, pois o egoísmo, a hipocrisia e a vergonha de nos mostrarmos como somos, desaparecem, e podemos ser NÓS mesmos…
Víamo-nos sem cabelo, sem unhas, inchados, com a pele queimada, mas lutando, pois continuávamos vivos.
Quando finalmente, chegou o dia da cirurgia, voltou a ficar de noite para mim, e nova escuridão se apoderou de meu espírito. Rezei a Deus, pedi aos céus, que não me abandonassem, que me dessem força, para permanecer forte até ao fim, para não chorar na hora da despedida dos entes queridos e de meus queridos e adorados filhos… Que medo tive de não voltar a vê-los, de perecer na mesa de operações, de não poder nunca mais abraçá-los e sentir-lhes o cheiro doce de criança.
Numa fracção de segundo, diante de meus olhos que não choraram, revi todos os momentos chave daqueles últimos seis meses: o diagnóstico, os exames assustadores, o primeiro tratamento, eu a rapar a minha cabeça quando o cabelo começou a cair em catadupa, a colocação do cateter, as primeiras dores, a véspera de Natal em que fiz quimio, o último tratamento, e o dizer “adeus” ou “até breve”, a todos aqueles que naquela sala me ajudaram.
Por eles, por tudo o resto, e acima de tudo, por mim, virei as costas e entrei no carro, sem olhar para trás. Há luxos aos quais não temos direito…
Foi na antessala do bloco operatório, minutos antes de me administrarem a anestesia, que me permiti chorar durante uns segundos, depois de me ter apercebido que, se o não fizesse, algo dentro do meu peito iria rebentar.  Precisava tanto de parar de representar, de parar de fazer de conta que estava tudo bem, que não me doía nada, que o eu ter cancro não era nada do outro mundo, e que o facto de eu estar prestes a ser submetida a uma mastectomia, não alteraria em nada o facto de me tornar uma mulher diferente das mulheres comuns… Estava tão cansada de ser forte… Por isso chorei.
Quando acordei da cirurgia, não queria acreditar! Estava viva!... Os dias que se seguiram, os tratamentos de radioterapia, os curativos, tudo passou tão rápido, pois minha ânsia de voltar a viver era tanta, que só queria que o tempo passasse depressa, para sentir forças novamente, para voltar a ter cabelo, para poder brincar com os meus filhos… Existia em mim uma força de viver, uma alegria, uma quase histeria na sobrevivência, que fez com que a recuperação fosse uma fase de alegria, e jamais de sofrimento.
Os amigos que fiz no IPO, as pessoas que me trataram, desde médicos, a enfermeiros, a radioterapeutas, a pessoal auxiliar… Esses são meus “Caminhantes na Luz”, pois todos os dias lidam com um sofrimento difícil de igualar, todos os dias vêem no alto de nossas cabeças, a “espada” que se encontra pendente, e que a qualquer segundo pode ser desferida.
Quando descobrimos que temos cancro, valorizamos tudo ao milímetro: a luz do sol, o vento, o Verão e o Inverno, as pessoas, os aniversários, pois nunca sabemos qual será nosso último acontecimento positivo. Ficamos mais sensíveis, mais do “lado de lá” do que do de cá, e o Além, surge, por vezes, como um conforto face ao sofrimento e à dor. Mas, a luta pela Vida que travamos todos os dias, faz-nos perceber, que sem o sabermos, adoramos imensamente VIVER, e que só faremos a “travessia” para o outro lado da Vida, quando chegar nossa hora de embarcar nessa jornada…
A solidão em que a sociedade nos força a viver, quando não temos cabelo (principalmente), faz com que nos tenhamos que nos tornar no nosso melhor amigo, e, finalmente, conseguimos olhar para o interior de nosso coração e percebemos que, afinal, somos seres com muita Luz também.
Ao longo desta caminhada, que continuo a fazer, e que tem corrido melhor do que esperava, fui perdendo companheiros de batalha, e todos os dias penso em quantos mais irei perder antes que chegue a minha hora de partir também. No entanto, foi-me dada uma segunda oportunidade, que pretendo partilhar com todos… Continuo a poder abraçar os meus filhos, e a sentir-lhes o cheiro doce… Foi-me permitido viver um pouco mais e acompanhar o seu crescimento e estar presente quando precisam de mim. Todos os dias agradeço a Deus, a oportunidade que me deu de viver um dia mais, para além dos muitos que contava em não viver. Porém, dentro da solidão a que o estigma da doença nos condena, aqueles que olham para nós com amor, com carinho e compreensão, sem aversão ao nosso aspecto e às cicatrizes físicas e emocionais, esses são os nossos verdadeiros salvadores. Aqueles que, apesar de terem real consciência do nosso estado, jamais deixaram de nos transmitir esperança e confiança no futuro.
Hoje, as minhas noites já não são assustadoras e escuras. Apesar de ter escolhido viver, a Morte surge, por vezes, como uma companheira sedutora, que fará com que a “espada” desapareça de cima de minha cabeça. Contudo, devo a Luz que carrego dentro de mim, a todos aqueles que nunca desistiram de acreditar que viver era a única opção de que eu dispunha. Foram meu farol em dias de tempestade, foram aqueles que me guiaram para fora da tristeza e do desespero. Por isso lhes chamo da Luz, Caminhantes…
É noite e tenho 37 anos. Neste momento não tenho cancro. Olho meus filhos dormindo sossegadamente, e dou-lhes muitos beijinhos como faço sempre. Ao desligar as luzes sorrio. Descobri que a única LUZ de que preciso, está dentro de mim. E que ela me foi doada por todos aqueles que, na escuridão, conseguiram VER. A minha gratidão será eterna. O amor que sinto por eles, infinito. E eu, humildemente, tentarei passar essa LUZ, a todos quantos que, como eu, viveram assustadoras noites de escuridão.

1 comentário:

  1. Olá Anabela,
    Parabéns pelo lugar atingido no concurso! Entre tantos textos, foi muito bom!
    O texto é muito lindo! Eu já o tinha lido, na altura do concurso.
    Trinta e sete anos... tão nova! Aproveite bem a oportunidade que a vida lhe deu, e seja muito FELIZ!
    Beijinhos amiga,
    Glória

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